Quando vi Fransérgio Araújo em O maldito, em um pequeno teatro na Rua Augusta, contracenando com Marba Goicochea, eu fiquei em estado de choque. O ator começara a desenvolver um método próprio – o Teatro Selvagem, que segundo ele “uma metamorfose, um mergulho no inconsciente, trazer à tona sua sombra, seus bichos, sua maldade, via seu animal de poder, para justamente você destruir a hipocrisia de sua morada interna e banir a ideia de impossibilidade e encontrar sua energia primal , essencial em você e de você para você.” A escolha certa da dramaturgia de Lautreamont, um dos autores preferidos de Kazuo Ohno e meu também, casou perfeitamente com suas propostas de imersão da platéia no inconsciente coletivo. Ontem, na plateia da Galeria Olido, no centro de São Paulo, seu método explodiu e causou uma catarse como há muito eu não via no teatro. Talvez somente com Marilena Ansaldi em Hamlet Machine de Heiner Müller. Eu vi arte no palco e mergulhei nos oceanos do labirinto do meu inconsciente, fui devorado e saí transformado. Um dos super poderes da arte – transformar!
O espetáculo é inspirado no imaginário do próprio mito do ser parte homem parte touro. Estão ali o fio de Ariadne, e ela em si, vivida pela atriz Fabíola Karnas. Com o subtítulo de “A dança trágica do touro vencido” – o espetáculo pós-moderno mistura o teatro selvagem com butô, cultura pop (na humanização do personagem que aparece como um frequentador da Praça Roosevelt) e com Antonin Artaud e seu teatro da crueldade, trazendo o rito de volta ao teatro. Eu quase não pisquei os olhos, fascinado com a verdade do que ali dançava frente aos meus olhos, fazendo-me projetar imagens ancestrais do meu imaginário do meu próprio inconsciente. E como um espelho, me vi na pele do bicho-homem. Meus instintos, minha razão, afloraram e dançaram a tragédia da sociedade que tenta mascarar sua natureza com as canastrices sociais da hipocrisia. Artaud arrancou nossas máscaras e ficamos nus.
Uma das inspirações do espetáculo que ainda é um work in progress, são os contos dos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortazar, com toda a sua gama de realismo fantástico, presente do começo ao fim. “O fato é que sou único”, diz Borges. Único, original é a pesquisa de Fransérgio, que cria um teatro com seu imaginário, códigos, leis, um teatro que se aprofundará e crescerá ainda mais com sua continuidade.
Ele encontrou em Fabio Mazzoni o diretor ideal. A dilatação do tempo, a iluminação barroca, que remete a Caravaggio e Rembrandt, a trilha hipnótica e a condução do ritual viraram mágica nas mãos do diretor.
Lembro que Walter Salles um dia disse na exibição da cópia restaurada de Limite de Mário Peixoto, que o diretor queria no final que as pessoas ficassem ainda tomadas pelas sensações do seu filme e que saíssem devagar da sala. É o que aconteceu com todos nós ali. Não queríamos ir embora. Sentimos a força e a verdade do teatro na pele e na alma.
“Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro, ou um homem? Ou será como eu?”
Em uma temporada de peças falsas, onde atores cospem palavras sem imagem, Minotauro nos faz saborear cada segundo, sem pressa, e nos leva a uma inesquecível experiência que só a ancestralidade pode proporcionar. Evoé! (Crítica escrita por Dioniso Neto em 19 de maio de 2025)
Originalmente publicado em https://dionisioneto.wordpress.com/2025/05/19/minotauro-tras-o-teatro-ritual-de-volta/